segunda-feira, 27 de maio de 2013

Voz do povo


Marcelo Souza

Era a parte mais marginal da família De Castro, compreendera de perto a fome. Ousando fugir dela, ele corria. Como correu pela passarela a esquerda, fugida de cães embravecidos, com passos bem firmes, dinâmicos, saltava cercas e quintais alheios, já imune ao barulho dos vizinhos, julgou-se a salvo do crivo da lei, havia sido mal avaliada a sensação de alívio e, assim, de pé sobre assoalhos de equívocos, ele seguia confiante de mais um êxito. Quando o trabalho já estava completo, ele retirava o seu gorro preto, seguindo pelos caminhos tortos com os bolsos cheios de metais. Sua lanterna era a única testemunha do acontecido, companheira indispensável ao trabalho noturno, apoiada na não usual facilidade em encontrar no escuro os frutos do furto. Reza o manual do bom ladrão, décima quinta edição, que, depois da fuga, a lanterna deve descansar, para não chamar atenção de curiosos, não despertar suspeitas dos desconfiados. Josué todos os sábados realizava investidas diferentes, sentia que seu sangue quente ainda corria em suas veias de açúcar, estava completamente viciado no prazer de sentir suas veias derreterem devido ao gozo do ato ilícito. De tão competente fez-se conhecido, fez-se temido e admirado... esfomeados do mundo, uni-vos! Para Josué, roubar de pobre custava caro, custava o sono, roubar de rico... Ah, era lindo. Tranquilo em mais uma noite de trabalho, vitimou dessa vez uma joalheria, saiu devagar como nunca houvera feito, ficaram pelas vielas os furtos do trabalho, ouros, pratas, joias belas, na lama, na terra para o povo sofrido. No regresso para casa desprevenido, sua lanterna é o lume do caminho, ele pensava ainda estar sozinho, ledo engano... A companhia não tardou se apresentar. Ouvira apenas os três estrondos, o som do sangue escorrendo leva a lanterna ao chão, apressou o passo de vota ao lar, depois de emboscado, se via ferido, em frente à casa entoou apelo... Freeedeeeriiico. Bradou, estridentemente de fora da porteira, com um grito agudo, atípico. Seus passos pareciam embriagados, ignorando os carrapichos por entre as marcas das rodas de carroça na estrada, sua cabeça pendia meio curvada como se fosse descomunal o esforço de mantê-la erguida e seu olhar estava cansado, sedento por chegar. O tempo ainda úmido, do chuvisco que pingou durante toda madrugada, o nevoeiro que cobria a rua já se dissipava, nos primeiros e ainda frios raios de sol. Aos olhos do Josué nada era claro, tudo ainda carecia de nitidez, correndo, chamou novamente e, dessa vez já quase sem fôlego, Josué não percebera o tempo, que, como uma pluma voava com leveza e suavidade, fugindo para longe dele, e a cada passo, a cada pensamento seu, os instantes pareciam cada vez mais escapar pelos dedos. Termômetros marcavam bem menos que cinco graus, no exato momento em que ele entrara, cambaleando pela porta a dentro, já no casebre, foi, aos trancos, ter de perto com o capacho de pele de ovelha no interior da casa. Frederico apressa-se para aquecer o irmão, poupá-lo dos perigos de uma eventual hipotermia, esforço improfícuo, já não era o frio que incomodava mais, em boa verdade o frio se mostrava sedativo. Havia algo de errado. A cada segundo que passava o fôlego de Josué escorria como o sangue que jorrava dos três ferimentos de suas costas. Ferimentos adquiridos na emboscada dessa noite. Ele não queria joias, tudo que Josué desejava era ser como Frederico. Desde quando saíram do orfanato, os dois irmãos ocuparam aquele casebre abandonado, onde moravam. Juntos formavam uma boa dupla na dura tarefa de sobreviver, se faltasse jantar sobrava poesia, se complementavam, enquanto Josué era atlético, astuto, frio e de escrúpulo duvidoso para os padrões da sociedade paulista de 1910, Frederico era bom menino, cheio de fé, de moral e bons costumes, além de naturalmente belo; a vaidade era um forte traço de sua personalidade, amealhara centavos desviados até das refeições para usufruir do privilégio de usar camisas novas. Frederico, trabalhador honesto, ainda trêmulo, segurava o corpo do irmão inerte, sem forças para nada mais. Chegaram as lágrimas como primeiras convidadas do velório, encharcaram os lírios férteis de luto. Frederico, agora se depara sozinho diante da própria existência. Seria a solidão capaz de criar um novo homem? Frederico era outro e ainda não sabia onde por toda sua vaidade remanescente, aquela que herdara do Frederico que morreu junto com Josué. Sem vontade nenhuma de ser, ele não vislumbrava mais utilidade em suas camisas novas, em seus sapatos limpos, quando na mesa da ceia, sobrava nada e isolamento. Nesse dia não vieram amigos ao velório, em uma celebração solitária Frederico gozou a derradeira proximidade dele com o irmão e com o ele que morria junto. Os dias vão avançando, a excitação provocada pelo susto já não afetava seu organismo, tudo que ele sente não é frio nem fome, dor nem maldade, em seu coração nada mais habitava, as frases que brotavam de Frederico de Castro nasciam das profundezas de sua dor e assaltavam sua boca, pareciam inaudíveis a todos que ainda guardavam preconceitos em porões de navios negreiros.
.