Marcelo Souza
Era a parte mais
marginal da família De Castro, compreendera de perto a fome. Ousando fugir dela,
ele corria. Como correu pela passarela a esquerda, fugida de cães embravecidos,
com passos bem firmes, dinâmicos, saltava cercas e quintais alheios, já imune
ao barulho dos vizinhos, julgou-se a salvo do crivo da lei, havia sido mal
avaliada a sensação de alívio e, assim, de pé sobre assoalhos de equívocos, ele
seguia confiante de mais um êxito. Quando o trabalho já estava completo, ele retirava
o seu gorro preto, seguindo pelos caminhos tortos com os bolsos cheios de metais. Sua lanterna era a única testemunha do acontecido, companheira indispensável ao
trabalho noturno, apoiada na não usual facilidade em encontrar no escuro os
frutos do furto. Reza o manual do bom ladrão, décima quinta edição, que, depois
da fuga, a lanterna deve descansar, para não chamar atenção de curiosos, não despertar
suspeitas dos desconfiados. Josué todos os sábados realizava investidas diferentes,
sentia que seu sangue quente ainda corria em suas veias de açúcar, estava
completamente viciado no prazer de sentir suas veias derreterem devido ao gozo do
ato ilícito. De tão competente fez-se conhecido, fez-se temido e admirado...
esfomeados do mundo, uni-vos! Para Josué, roubar de pobre custava caro, custava o
sono, roubar de rico... Ah, era lindo. Tranquilo em mais uma noite de trabalho,
vitimou dessa vez uma joalheria, saiu devagar como nunca houvera feito, ficaram
pelas vielas os furtos do trabalho, ouros, pratas, joias belas, na lama, na
terra para o povo sofrido. No regresso para casa desprevenido, sua lanterna é o
lume do caminho, ele pensava ainda estar sozinho, ledo engano... A companhia não
tardou se apresentar. Ouvira apenas os três estrondos, o som do sangue escorrendo
leva a lanterna ao chão, apressou o passo de vota ao lar, depois de emboscado,
se via ferido, em frente à casa entoou apelo... Freeedeeeriiico. Bradou, estridentemente
de fora da porteira, com um grito agudo, atípico. Seus passos pareciam
embriagados, ignorando os carrapichos por entre as marcas das rodas de carroça
na estrada, sua cabeça pendia meio curvada como se fosse descomunal o esforço
de mantê-la erguida e seu olhar estava cansado, sedento por chegar. O tempo
ainda úmido, do chuvisco que pingou durante toda madrugada, o nevoeiro que
cobria a rua já se dissipava, nos primeiros e ainda frios raios de sol. Aos olhos
do Josué nada era claro, tudo ainda carecia de nitidez, correndo, chamou
novamente e, dessa vez já quase sem fôlego, Josué não percebera o tempo, que, como
uma pluma voava com leveza e suavidade, fugindo para longe dele, e a cada passo,
a cada pensamento seu, os instantes pareciam cada vez mais escapar pelos dedos.
Termômetros marcavam bem menos que cinco graus, no exato momento em que ele entrara,
cambaleando pela porta a dentro, já no casebre, foi, aos trancos, ter de perto
com o capacho de pele de ovelha no interior da casa. Frederico apressa-se para
aquecer o irmão, poupá-lo dos perigos de uma eventual hipotermia, esforço
improfícuo, já não era o frio que incomodava mais, em boa verdade o frio se
mostrava sedativo. Havia algo de errado. A cada segundo que passava o fôlego de
Josué escorria como o sangue que jorrava dos três ferimentos de suas costas. Ferimentos
adquiridos na emboscada dessa noite. Ele não queria joias, tudo que Josué
desejava era ser como Frederico. Desde quando saíram do orfanato, os dois
irmãos ocuparam aquele casebre abandonado, onde moravam. Juntos formavam uma
boa dupla na dura tarefa de sobreviver, se faltasse jantar sobrava poesia, se
complementavam, enquanto Josué era atlético, astuto, frio e de escrúpulo
duvidoso para os padrões da sociedade paulista de 1910, Frederico era bom
menino, cheio de fé, de moral e bons costumes, além de naturalmente belo; a
vaidade era um forte traço de sua personalidade, amealhara centavos desviados
até das refeições para usufruir do privilégio de usar camisas novas. Frederico,
trabalhador honesto, ainda trêmulo, segurava o corpo do irmão inerte, sem
forças para nada mais. Chegaram as lágrimas como primeiras convidadas do
velório, encharcaram os lírios férteis de luto. Frederico, agora se depara
sozinho diante da própria existência. Seria a solidão capaz de criar um novo
homem? Frederico era outro e ainda não sabia onde por toda sua vaidade
remanescente, aquela que herdara do Frederico que morreu junto com Josué. Sem
vontade nenhuma de ser, ele não vislumbrava mais utilidade em suas camisas
novas, em seus sapatos limpos, quando na mesa da ceia, sobrava nada e isolamento.
Nesse dia não vieram amigos ao velório, em uma celebração solitária Frederico gozou
a derradeira proximidade dele com o irmão e com o ele que morria junto. Os dias
vão avançando, a excitação provocada pelo susto já não afetava seu organismo, tudo
que ele sente não é frio nem fome, dor nem maldade, em seu coração nada mais
habitava, as frases que brotavam de Frederico de Castro nasciam das profundezas
de sua dor e assaltavam sua boca, pareciam inaudíveis a todos que ainda
guardavam preconceitos em porões de navios negreiros.
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